Em Brasília também se morre – de tédio.
Em Brasília, 19 horas. Hoje, sábado, dia 19 de setembro de 2009. Isto não é propaganda do livro do Eugênio Bucci sobre os fantasmas escondidos nos armários de aço da Rádio Nacional. É mais uma morte. De uma vizinha aqui na 212 Sul. Pouco antes, tinha eu saído à janela, com vista para o aeroporto desta fazenda chamada Brasilha. Do sexto andar, olhei as crianças pulando corda, brincando de 31 e subindo na árvore para catar manga. É. Isto ainda existe aqui em Brasília, até porque fica um pouco longe da parte mais perigosa da cidade, lá na Esplanada dos Podres Poderes.
Então, tudo plácido, fui preparar minha caipirinha, conversei com meu primo, pelo computador, em Curitiba, sobre a grande menina Marina (mulher, negrinha, ex-analfabeta e futura presidente), com quem ele trabalhou lá no Acre, apesar de polaco.
Como quem não quer nada, coçando o saco, sábado à noite, caldinho de feijão, voltei à janela onde, de repente, vejo um cenário totalmente diferente:
No lugar das crianças, um grupo de curiosos, entre eles o de capoeira, vestido de branco, que volta do ensaio, isto acontece todos os sábados, a esta hora.
Em cima da calçada de pessoas, no lugar das crianças, está o camburão número 80140, da primeira delegacia de polícia civil do Distrito Federal. Ao lado dele, acaba de estacionar o rabecão número T 0138, de onde desce uma gatona, toda vestida de preto, calça arrebitada e revólver na cintura adocicada. Deu vontade de descer correndo, gravador na mão, olha, sou da Rádio Nacional mas vai que a morenaça me obrigasse a assoprar sei lá onde para testar o nível da minha presente sanidade.
Prefiro o cômodo ao alcance da minha mão direita. Interfono para o porteiro:
– Carlito, tem alguma coisa acontecendo no prédio?
– Não é nada não, seu Mamcasz. É que foi achada uma pessoa morta na entrada C, no apartamento do terceiro andar.
– Ah… foi só isso?
– Foi…
– Então, tá… bom serviço.
Senti ainda o cheiro de uma peixada nova, ao leite de coco, vindo do vizinho do quinto andar, voltei para a minha caipirinha, e aqui, neste meu computador de última geração, procurei pelo seguinte arquivo com um conto que eu fiz, faz uns tempos, sobre este prédio, cada apartamento colocado como se fosse um dos sete anjos do Apocalipse.
Começa assim, ó:
Diante de mim, aqui em Brasília, mora um prédio. Está sendo terminado aos poucos. A pintura no refazer. Desfazendo-se. Os fios multiplicados das antenas de TV escorrem à solta. É caminho de esgoto nas casas longínquas das diaristas . Gravo a exposição da individualidade das pessoas separadas em Quarto-e-Sala. São seis andares ao meu pensar, dispostos na altura máxima das Quadras de Brasília. Ditas Super. Esconderijo de gente acomodada ao fingimento à força. Concurseiros. São sobreviventes. Sonhadores. Acham que aqui está o ouro do Centro-Oeste. Eles arrulham, ralham e rolam, soltos, no ralo do esgoto. Falham no canto santo. No soprano, escuto eu o pranto deste
POMBAL DE GENTE INACABADA
Este meu conto, depois de descrever a vidinha besta de cada um dos vizinhos que eu acompanho, de longe, na surdina, ao binóculo, durante seis meses, aqui da minha janela, na 212 Sul de Brasília, lá pelas tantas termina que nem a pessoa encontrada morta, agora há pouco, no meu prédio, e de quem não tenho a menor idéia de quem seja, até porque se trata de mais uma entre as tantas rotativas personagens que se deslocam a Brasília pensando em vencer na vida.
Quem sabe seja algum militar pois este prédio era do EMFA, atual Ministério da Defesa, de que nós civis conseguimos ocupar meia parte menos um voto, justo pelo qual perdemos na guerra do condomínio. Quem sabe amanhã eu esteja nos jornais no meio de um puta mistério internacional envolvido com a venda de aviõezinhos de brinquedo para caçar sei lá o que, ou submarinos nucleares de quinta categoria. Quem sabe…
Mas neste momento, eu percebo apenas que acaba de acontecer o que há muito tempo eu destinei a esta pessoa, agora morta, minha vizinha, um dos destinos que estava no final deste meu conto.
Termina assim, ó:
Perco-me em delongas do fim que proporcionarei aos desconhecidos deste POMBAL DE GENTE INACABADA. Já fui responsável pelo sumiço de amores mil, amizades cem e paixão nenhuma. Exterminei pombos da paz. Envenenei ninhadas de gatos. Matei cachorro a grito. Atirei no escuro numa pessoa que se mexia a esmo. Cismo até que certa vez ajuntei cicuta à cachaça do santo e dei-a de beber ao pecador impuro.
E por que então eu não me sinto agora mais em condição de terminar este conto com um assassinato e tanto aqui neste prédio da 212 Sul de Brasília? Ou apenas uma morte, mesmo que ela seja a mais normal aqui por estas bandas, ou seja, a morte por tédio.
Ando de um lado ao outro do pilotis à procura de inspiração para esta minha tamanha incapacidade pistoleira. Inanimado, penso aqui comigo:
Alguma noite, alguém vai morrer neste meu prédio. Deus é grande. Isto vai acontecer.
E não é que, até que enfim, agora há pouco, minhas preces foram atendidas?
A única coisa que está me incomodando é este choro alto vindo lá de baixo. Não estou nem conseguindo escrever direito.
Acho que vou interfonar pro porteiro outra vez:
– Carlito!
– Que é, seu Mamcasz.
– Manda esta pessoa que está chorando calar a boca!!!
– Não dá, seu Mamcasz.
– Não dá porque, Carlito?
– É a filha da mulher encontrada morta.
– E EU COM ISSO, PORRA !!!!!!!!!
( O fato que se deu foi o seguinte. Uma mulher, professora, branca, perto dos 30 anos, mãe de uma menina com seis anos, que estava na casa da irmã, no Guará, casada com o marido que estava de viagem a Minas, foi encontrada enforcada num dos apartamentos deste Pombal de Gente Inacabada. Não virou notícia de jornal porque repórter que se preza, aqui em Brasília, noite de sábado, está mais é enchendo a cara de caipirinha e falando mal de tudo aquilo que a gente não coloca no olho-no-olho, olho-no-ouvido, olho-no-dedo. E, de fato, quase ninguém conhecia a ex-pessoa, que estava no prédio há mais de um ano, vindo de outro, aqui na mesma dita Super Quadra Sul de Brasília, uma ilha, sim senhor, cada um na sua. )
dezembro 10, 2010 at 09:14
Muito bom o conto.