A cada ano, o Exército sul-africano prende cerca de 30 mil imigrantes do destroçado Moçambique que repetem a façanha dos mexicanos com relação aos Estados Unidos. 

         Recentemente, ao mostrar os últimos dados, o coronel Hein Visser, porta-voz das Forças Armadas da África do Sul, defendeu o aumento da carga elétrica nas cercas da fronteira a níveis de chegar a matar o invasor. 

         O Congresso Nacional Africano, da turma do Mandela, continua com  61 por cento dos votos   dos 23 milhões de votantes, apesar dos 39 por cento de desemprego e dos maiores índices mundiais de assaltos e estupros. 

 

              Foi do conforto de Pretória, uma das capitais,  que decidi realizar outro sonho alimentado desde os tempos de universitário, que era  um dia visitar a Mama África, em especial a do Sul,  e entrar no Soweto. 

              Um gueto tão conhecido das telas dos noticiários de televisão, por conta dos protestos contra o regime do aparthaid, da histórica presença do Madiba Mandela, dos sermões do Bispo Tutu, enfim, a alma  dos pretos na África do Sul. 

               Muito turista branco visita hoje a área do Soweto exatamente na condição de turista, acompanhado por guias pretos que vivem no local, e a motivação, na maior parte das vezes, é a mesma dos gringos subindo a Rocinha no Rio. 

              Neste caso do Township do Soweto, era imprescindível a minha ida somente através de um tour organizado e que, no caso, fui encontrar num albergue de estudantes que funciona no centro de Pretória. 

 

                     Os outros tours não me interessavam, pois as favelas continuam a existir nas periferias de todas as cidades sul-africanas, sejam elas pequenas, médias ou grandes, sempre com aqueles barracos cobertos de zinco, ao redor das vilas dos brancos. 

           Gastei 150 rands sul-africanos (cada seis compram um dólar norte-americano) em troca do transporte desde o hotel em Pretória, a 70 quilômetros de distância do Soweto. 

           Éramos um grupo formado por um casal de brasileiros, um holandês, uma inglesa, duas australianas e uma alemã, todos devidamente entregues a um guia, preto, velho morador do local a ser visitado. 

           Conhecedor de todo o lado bom, ruim e péssimo de Soweto, ele seria mostrado a nós sem qualquer problema de camuflar a realidade que estava ali, escancarada. Afinal, Soweto existe, quem nem Mangueira, Alagados e outras. 

 

                  Ao sairmos do centro de Johannesburg, o guia aproveitou para fazer uma espécie de mini-tour, exibindo o estádio de futebol, onde o Brasil não jogou – no caso, a partida aconteceu noutro, mais modesto, que existe na entrada do Soweto. 

           Passamos,  em seguida, pelo prédio mais alto da África, de onde, segundo o negro guia  ” se tem uma linda vista da região mas que exibiu também o maior índice de suicídios de pretos, na época do apartheid, e que hoje é ocupado por uma multinacional norte-americana”

          Logo depois, uma construção colonial antiga foi destacada pelo guia como sendo a sede da Central de Polícia, “que hoje em dia tem procurado exercer a sua autoridade de uma maneira bem diferente de antes, quando este local era conhecido como o Centro de Torturas de Pretos”.  O lugar é  tristemente lembrado  onde foi assassinado Steven Biko, “este sim, o nosso herói da Libertação, da luta para o fim do Aparthaid, eu não entendo porque vocês só conhecem o nosso Nelson Mandela.” 

              Enquanto a kombi passa pela avenida central da capital administrativa da África do Sul em direção ao Soweto, fica nítida a mudança que a gente vai sentindo, nos dias de hoje, pela seguinte ordem:   casas elegantes,  setor comercial,  primeiras casas dos descendentes dos indianos e, assim como quem não quer nada,  casas mal conservadas dos pretos. 

             E assim,   estramos na rodovia paralela à auto-estrada que, nos tempos passados, era de uso privativo dos brancos que, por outro lado, eram apedrejados nas favelas. 

 

                      South-west townships – as iniciais que formam a cidade exclusiva de pretos mais famosa do mundo, ou seja, SOWETO – na verdade é um grupo de cidades-satélites, entre elas Orlando, Moroka, Jabulani, Naledi e Kliptown, a 16 quilômetros do centro de Johannesburg. 

                      Elas surgiram na fase da industrialização, principalmente a partir de 1948, depois da Segunda Guerra Mundial, quando as coisas ficaram muito bem definidas na África do Sul: tudo para os brancos, que continuam sendo treze por cento da população. 

                          Em 1980, no tempo do aparthaid, a região do Soweto abrigava 868.580 moradores, que eram impedidos, por lei, de se mudarem para outras partes da região ou mesmo do país. 

                        Na mesma época, os brancos permitiram a primeira eleição livre, para que os pretos elegessem um Conselho Municipal para cuidar, sob a supervisão dos branquelos, dos afazeres locais, dando um resultado de 96 por cento de votos nulos e o começo de uma luta para o fim da segregação, que custou mais de 600 vidas. 

 

                       “Hoje nós temos aqui no Soweto mais de dois milhões de pretos, contando os imigrantes ilegais dos outros países vizinhos e os que sairam das tribos do meio do mato” voltou a dizer o guia, numa surpreendente clareza – “vivendo entre o bom, o ruim e o péssimo, com problemas de violência e principalmente desemprego, embora com a tão sonhada liberdade de ir e vir usando estas velhas lotações , mas é verdade que muita coisa foi feita pelo governo do nosso madiba (pai) Mandela” . 

 
                         O Soweto ficou famoso no mundo inteiro, inclusive em alguns filmes de Hollywood, depois de 1976, quando irromperam as revoltas dos estudantes, insuflados pelo lado político do Congresso Nacional Africano, que também tinha o braço armado da guerrilha. 

                       A luta pelo fim do aparthaid tenha na verdade começado em 21 de março de 1960, longe dali, na township de Sharpeville, no coração do branco Transvaal, quando a polícia matou 69 pretos entre os milhares em passeata. 

 

                         Então, vamos começar a nossa visita pela parte pobre, quando o guia-motorista nos repassa para outro guia, conhecedor profundo dos becos da favela existente dentro da favelona Soweto. 

                        Passa a ser um local cheio de barracos de zinco e papelão, ainda sem luz nem água, os toaletes coletivos bem raros, o forte cheiro do óleo diesel usado para cozinhar e iluminar . 

                       A gente inclusive é conduzida a interior de uma residência, um quarto-sala-cozinha abrigando uma mulher e cinco crianças abandonas pelo marido. 

 

                 “Vocês estão tendo a satisfação de conhecer o interior do Soweto e as modificações que já foram feitas depois que a gente conquistou a liberdade e isto foi o principal para todos nós” – arengou o companheiro guia local. 

                   Estamos na reta final da campanha eleitoral para escolha do sucessor de Mandela, que será,  todos sabiam, o vice dele, o Nbeke, da ala comunista do Congresso Nacional Africano.  A gente quer saber porque, em cinco anos de liberdade, com os negros no poder, eles não ganharam água, luz e esgoto. 

                 “É que vocês não conhecem o verdadeiro sentido da palavra liberdade e do muito que o atual governo teve que fazer por nós pretos que estávamos abandonados há tanto tempo, blá-blá-blá”. 

                 E continuou: 

                 “Eu  também não sei porque vocês estão querendo saber porque nesta parte mais pobre do Soweto não tem nenhum cartaz de propaganda dos políticos. Eu vou mostrar para vocês, daqui a pouco, está logo ali na frente

 

                  De volta para a kombi, teve o turista holandês que tirou fotografias abraçado às criancinhas da favela, que nem os gringos no Rio, Salvador, Manaus e até São Paulo. 

                  Dadas as devidas gorjetas ao guia conhecedor dos becos da parte mais pobre do Soweto, lá fomos nós conduzidos para o  agora guia preto vindo da capital. Ele nos mostra o que seria a parte rica, a parte boa, a parte dos novos ventos soprados com o fim do aparthaid, condenado que foi pelo mundo todo, enfim, iríamos ver o resultado da nova administração sul-africana 

                 “Esta área aqui do Soweto foi apelidada de Beverly Hills e nesta casa aqui, que vocês podem ver, toda reformada, dois andares, mora um vendedor de carros importados. Ele melhorou de vida mas não saiu da rua onde se criou, e a casa deve estar valendo bem uns 200 mil dólares americanos, vocês podem notar daqui como ela vale isto tudo. Aquela ali da frente também foi melhorada e vocês podem notar que todas as casas deste pedaço são muito boas e não existiam há dez anos”. 

  

                Neste momento, os branquelos politicamente intencionados, embora turistas, irrompem em perguntas mil, até porque não fazem dois minutos que a gente  saiu daquela verdadeira favela abandonada pelas autoridades, agora negras, como o foram antes, pelos brancos: 

               “Os pretos pobres de lá não costumam assaltar os pretos ricos daqui, até porque tem este monte de sistema de circuito de televisão e de alarme e estes avisos e estes cachorrões brabos atrás das grades”. 

                O guia-preto-motorista-vindo da-capital continuou imperturbável diante de seus cinco anos levando e trazendo turistas brancos do mundo inteiro para conhecer o Soweto depois do odiado regime do aparthaid: 

                 ” Esta mansão construída por Winnie Mandela, que foi mulher do nosso Nelson Mandela durante os 28 anos em que ele foi preso , mas desde o primeiro dia juntos, depois que ele ficou livre, nunca tiveram nada, e ele sentiu muita solidão por isso, pensou que ia ser tudo igual…”   

                A história da Winnie Mandela, que nos tempos do aparthaid fez o papel de esposa fiel, mudou muito depois da chegada ao poder, com denúncias de todas as partes, embora ela continue na direção do Congresso Nacional Africano, e o Nelson Mandela esteja casado com a ex-esposa de Samora Machel, o líder da independência do destroçado, ainda hoje, Moçambique, e que morreu num acidente de avião, junto com quase todos os Ministros, provocado pelos brancos sul-africanos. 

                 “Ah, esta mansão da Winnie, que é muito amiga do sucessor do Mandela, o Nbeke, e por isto este pedaço se chama Beverly Hills, custou uns 600 mil dólares americanos e quando ela foi investigada, disse que o dinheiro foi mandado por um fã da causa negra sul-africana, um banqueiro suiço, que preferiu continuar no anonimato.”   

  

                 O   que vimos, dois minutos depois, só fez aumentar a nossa estupefação, até parece que o nosso guia o faz de propósito, por maneiras indiretas, porque nos coloca diante de uma realidade ainda pior do Soweto: 

                “Ali é muito perigoso, mesmo de dia. É um  conjunto de antigas pensões, hostels ou hospedarias públicas, que foram invadidas pelo pessoal que fugiu das diferentes tribos que existem no interior da África do Sul e podem ser chamados de índios”.

               “Nesta parte, sem controle das atuais autoridades, existem grupos de zulus, shonas, ndebeles, vendas e de muitas outras tribos, cada um com uma cultura e até língua diferentes.  A gente não se entende com eles e por isso vocês não podem entrar ali, porque eles não deixam.  É lugar de muita violência, muita briga. Eles vivem abandonados, nem a polícia entra. É a parte que continua pior do que nos tempos antigos porque eles viviam lá no meio do mato e a gente nestes dormitórios, mas com emprego”. 

 

                 

               Paramos então na Praça Hector Peterson, onde foi morto o primeiro estudante secundarista durante o protesto contra o ensino obrigatório da língua Afrikaaner nas escolas, mudada agora pelo dialeto dos Shonas, etnia dominante entre as outras dez tribos que, oficialmente, formam a Nação. 

 
              O local onde o primeiro estudante foi morto na verdade foi debaixo de uma árvore, numa ruela um pouco distante da Praça, mas é que foi preciso uma área mais aberta para instalar o Museu ao Ar Livre. Cinco rands a entrada,  vários conteiners de aço, em cada um a história de como  o negro conseguiu chegar ao poder na África do Sul.
  

  

             O tour passa ainda pela casa original de Nelson Mandela, onde ele teria morado muito tempo antes, até porque  passou 26 anos na cadeia, na Ilha Robbenn, perto da Cidade do Cabo, os dois lugares tornados museus nos dias de hoje. 

  

             Em seguida, paramos em frente à casa do famoso Bispo Desmond Tutu, que preside a Comissão da Paz e da Transição, e também pela igreja-escola onde outro bispo, preto, foi acusado de assédio sexual infantil, injustamente, por Winnie Mandela. 

 

                 Antes de sairmos de Soweto fomos levados ao primeiro bar moderno, bom atendimento, uísque, cerveja, artesanato. É a face do pós-aparthaid, para um leve chá. 

  

                Cinco minutos depois, parece que o guia entendia do assunto, estávamos instalados numa birosca, chamada de Shebeen, que foi e continua sendo o bar ilegal, que produz a cerveja caseira, proibida, deve vender drogas, com certeza, “fiquem tranquilos que o lugar aqui é seguro, o quartel e a delegacia ficam logo ali, eles vêm aqui.”  

  

              Quase na saída do Soweto, passamos ainda pelo maior ambulatório da África, o Baragwanath Hospital, talvez o maior do mundo, para atendimento gratuito e público, cerca de dois mil leitos, obra ainda dos tempos do governo branco, localizado ao lado da primeira universidade, com prioridade para acesso a estudantes negros, trabalho do atual governo, os dois em frente à usina termoelétrica, responsável pela alta poluição do ar em toda esta região ainda destinada aos pretos pobres da África do Sul.

              Na lembrança do grupo de turistas, enquanto a kombi passa pelo centro moderno de Johannesburg, para pegar a auto-estrada em direção à formosa  Pretória, ficam as imagens dos contrastes, da propaganda política na porta dos banheiros públicos, do terminal de transporte em péssimas lotações, dominadas por gangues que, vez por outra, promovem verdadeiras guerras pelo domínio de pontos e linhas, azar o seu se for envolvido por esta turba, na maioria das vezes armada e descontrolada.  

  

              Ainda pudemos parar no meio do mercadão usado por todas as cidades-favelas em torno do histórico Soweto mas aí não havia nada demais para nós brasileiros, acostumados às feiras livres desde o Mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará, ou São Joaquim, em Salvador, ou Feira de São Cristóvão, no Rio, ou mesmo a Feira do Rolo  pertinho de Brasília, a capital do nosso País, a Ilha Fiscal, a formosura para onde são mandados os nossos mais especiais representantes do nosso Povo. 


             Enfim, realizei o sonho de conhecer o histórico Soweto, e uma pergunta continua no ar, porque sabemos da importância da luta lá realizada mas, e os resultados?
 

  

            -Será que algum dia os pretos pobres os verão? 

          

             Da minha parte, só sei que voltei correndo para os braços de minha leoa: 

 

          Amanhã a gente parte para os lados do Oceano Índico, para conhecer o Reino do Lesoto, encravado no alto das montanhas, cercado por África do Sul por todos os lados. Foi o único país da região, dito autônomo,  para onde o governo de Nelson Mandela mandou tropas armadas, a maioria de brancos, a fim de garantir o status-quo e a risonha soberania do pobre Rei do Lesoto, um grande produtor de maconha. 

          Axé!