– Florzinha! Tô indo no mercado para comprar umas coisinhas porque quero preparar um final de semana bem gostoso para o meu Polaquinho.

– Deixa que eu vou. Faço este sacrifício. Descanse um pouco, Madame.

Em um minuto eu já estou com a senha do cartão na cabeça, o mesmo no bolso, três sacolas a tiracolo…

– Três por causa do quê? Olha a listinha aqui. Dá para trazer na mão. Leva uma só, meu polaquinho mascarado mais lindo do final da Asa Sul.

Vou. Primeira desobediência. É para ir no mercado classe B, mais perto de casa. Evito o classe A, aceita até cartão corporativo. Não tenho mesmo. Desembarco sorrindo no mercado classe C, operado por gente da classe D, nas 400, quem conhece a História de Brasília entende do que estou falando. É que nem o entorno da banca de jornal quando eu moro em Bonsucesso, no Rio. Sabe a fita dorex para impedir que a gente folheie as páginas além da primeira colocada na parede para fins de discussão, essa sim bem da democrática. Conforme o assunto, é precciso fazer uma vaquinha para comprar o jornal e tirar a dúvida principal, que nunca vem na manchete, cambada de imprensa maliciosa. Só para vender.

De volta ao mercado classe C das 400 de Brasília:

– Bom dia seu Polaco. Quanto tempo. Cadê Madame? Deixa antes medir a quentura do seu corpo.

(Pausa).

– Como estou?

– Você já esteve bem mais quente, seu Polaco.

Explico um adiantamento a respeito deste mercado classe C das 400. Todo mundo se conhece, cliente e empregado. Quando a gente volta de viagem, Madame sempre tem uma lembrancinha para os mais chegados. Nesta época de sumiço, todos se vigiam. Cada reencontro é um alento na esperança mútua. Tudo nos trinques – máscara, medidor de temperatura, faixas no chão, álcool à vontade, daí a primeira reclamação:

– Quando é que vão servir aquela cachacinha, hein?

Lista de Madame à mão, alembro-me da ordem de, além do distanciamento, não ficar batendo papo e voltar mais logo ainda para “meus” braços. Primeiro, o espaço dos legumes:

– Oi seu polaco.

– Oi neguinha.

Outra explicação antes que me envolvam na onda racista. Nada disso. Na primeira vez, peço licença para a linda pessoinha, sorriso largo, sempre disposta, amiga de todos.

– Posso te chamar de neguinha?

– Mas é lógico, seu Polaco. Mas vou logo avisando.

– O que?

– Se me chamar de loirinha, faço o maior auê. Quer ver?

– Não, ne-gui-nha.

– Cadê minha Amiga?

– Está descansando.

A resposta é uma gargalhada de verdade, ela, baixinha, no empurro do carrinho superlotado de frutos para reposição na bancada porque o dia do sacolão foi ontem, hoje não. E ela:

– E por acaso Madame tem o que fazer além de cuidar de você, seu Polaco?

– … (gargalhada mútua).

– Mas deixa minha amiga descansar quanto quiser. Ela merece.

Dos legumes (uma abobrinha só, dois tomates no ponto, três pimentões verdes, um par de limão siciliano, aquele amarelo). No previsto meu íntimo pensar desde as primeiras horas deste dia, acrescento meia dúzia de limão verde, sabe aquele próprio para caipirinha? E vou indo entre outros como vai seu polaco e madame não veio por causa de que como ela te deixa solto etécetera e tal.

Antes de dobrar à direita, na última fileira de prateleiras, em direção ao biscoito e o bolo só serve se for de maracujá ou então o de limão porque a gente sente o gosto quase na hora de engolir está me ouvindo meu polaquinho?

– Bem nítido, Madame.

– Está onde?

– Parado aqui na prateleira das…

– Diga logo.

– Bebidas.

– Sabia. Tua oferta para ir sozinho e ligeiro estava estranha mesmo.

– Qual bebida? Já sei, não precisa nem falar.

– Vodka.

– Nem pensar.

– Mas é da marca boa e está escrito “super-oferta”. Só 22 reais cada litro.

– Está bom. Mas uma só, tá? E volta logo. Estou com saudades.

– De que, Madame mais impetuosa de todo o Plano Piloto? Saudades de que?

– Saudades do bolo de limão é que não é.

Para que. Confesso que fico desestruturado no ato. Pego dois litros de vodka, já com a desculpa na ponta da língua molhada. Uma para mim e a outra para meu irmão agemeado. E vou direto para o caixa sem pegar mais nada.

– Oi seu Polaco. Quanto tempo. E Madame?

– Bom dia, tchau, se cuidem, fui.

– Tá com pressa hoje, hein seu Polaco.

Antes de finalizar, se é que ainda tem gente na cola, no ouvido, duvido, mesmo assim adendo dois fatos dignos deste relato de outra escapadela anciã no meio deste pico doido:

1) – Junto aos caixas, tem os empacotadores. Na mesma laia, ou seja, na mesma intimidade respeitosa mútua com os clientes conhecidos. Noto um deles mais afastado. Pergunto:

– Tudo bem, rapaz?

– Comigo, tudo ótimo.

– E por que está afastado dos outros?

– Eles hoje não querem papo comigo e dizem que tenho que manter distância.

– Mas deve ter um motivo para tanto.

– Tem sim.

– Qual?

– É que eu nasci Flamengo e vou ser Flamengo até morrer. Sou campeão. Como se diz mesmo, seu Polaco, você que é estudado, pela vez 38?

Diante da gargalhada campeã mesmo que no isolamento, reajo à altura:

– Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem pergunta.

– Que é isso, seu Polaco. O senhor é sempre tão educado. Por que isso?

– É que eu nasci Botafogo-Botafogo-Botafogo campeão desde quando mesmo?

Daí foi uma risada só e lá vou eu de volta para os braços de Madame. Ato 2:

– Polaquinho, que saudades.

Ela vai logo abrindo os embrulhos para desinfetar e, o principal, inspecionar.

– Cadê o meu bolo de limão?

Diante do rosto pseudo de choro latente de Madame, eu Polaco no ato confesso que me alembro que com as duas vodkas no saco esqueço-me do restante da lista. Por isso, faço o possível para não transparecer tamanha indignidade.

– Pois então, Florzinha. O bolo estava tão feio, tão seco, tão sem graça…

– Trouxesse assim mesmo. Você sabe que estou com desejos.

– Espera aí. Não comprei no classe B (na verdade, foi no C) porque Madame Florzinha merece o bolo de limão do mercado classe A. Tô indo e já volto. Jazinho mesmo.

The End.

Na verdade, vou até o mercado classe B (e não o A) e compro o bolo de limão. Volto correndo, porque não é indicado ficar na rua, tendo casa, nestes tempos pandemônicos, ainda mais para quem tem reservados os braços de Madame, quer dizer, agora não porque ela está às voltas com o bolo limonoso e um cafezinho depois vem o cigarrinho depois o livro que está lendo. Só me resta, ao canto, que nem cachorro com sede, de que mesmo, finalizar lastimoso:

– Homem sofre, vou te contar.

Inté e Axé.