O que seria de nós reclusos sem os serviçais
( O mais recente capítulo do livro em gestação
Diário da Pandemia em Berlim )
Da varanda da cela desta cadeia pandemônica ora em Berlim, primeiro no primo andar, agora no sétimo céu, acompanho de cá lá no chão a classe operária que um dia iria ao paraíso que, enquanto aqui neste inferno virótico, trabalha de cara aberta, sem manter distância mútua, no afã, entre outros, de catar o lixo nosso de antes, no depois e, principalmente, enquanto dure esta quarentena que se alonga no incerto.
Tem ainda os meio próximos, os serviçais da faxina geodetetizante da nossa moradia coletiva mas selecionada. Junto com eles, chegam o carteiro, o entregador de marmita, e para quem não ousa o êxito as compras do mercado nesta fase de tudo online, só quero ver como vai ser quando esta sociedade voltar a ficar offline, offemprego, offescola, offquasetudo da vida.
Falei aqui noutro dia do acompanhamento que fiz, desde o primeiro andar, ao fazer o café, quando no prédio do outro lado da rua, sempre às 06h45m, saía uma mulher de meia idade com a função de retirar para a frente da rua quatro conteiners de lixo, de cores diferentes. Quinze minutos depois chega o caminhão de lixo, cada dia de uma cor diferente, afinal somos uma sociedade toda reciclada.
Tem ainda, igual aqui em frente, mas neste caso mais do alto, os laboriantes do leste europeu trazidos para comerem poeira suja de cimento misturada ao asfalto e ferragens das obras do metrô que garantem ser de essencial urgência para os que não se aventuram nem a pegar um vento à janela, vai que o coroa chinês adentra o sacrossanto lar transformado em creche, asilo ou como se diz, home office.

Was wurde aus uns Gefangenen ohne die Diener werden?
Pois acordo hoje e olho para o parque em frente, que começa a ficar verde primaveril, e onde a classe média pseudo-encarcerada a domicílio pode deitar na grama e ensolarar suas ancas durante um certo tempo, ou então dar vazão ao tratamento dos amados cachorros ou fingir que se pratica algum tipo de exercício com as crianças aqui não mimadas e loucas para voltar ao convívio social das escolas.
O cenário da servidão a serviço dos que temem o coronavirus, parecendo que aos serviçais ela não alcança, nesta manhã começa pelo trator que apara o gramado, o caminhão que recolhe as folhas, o romeno que passa o aspirador nas quinas da calçada, enfim, até os expiradores de água, diversos, no afã de deixarem tudo limpo e cheiroso porque logo mais chegam os humanos e os caninos enfurnados nas celas.
Deixo então para o final o propósito desta ata, espero que não a final, afinal ninguém sabe nosso sino destino, para contar um episódio genuinamente alemão. No silêncio, chegam dois caminhões. Dois motoristas. Um com o enorme guindaste. Atrelado ao outro, uma pequena máquina. Aguardemos. Já descrevo este ato que, com certeza, é de extrema importância para a sociedade, diria essencial. Detalho.
O motorista do primeiro caminhão sobe na cadeira na base do guindaste e ele mesmo aciona o controle e vai subindo até o meio da árvore verde e frondosa e começa, já com a motoserra acionada, a cortar cada galho maior do que o outro. Na calçada, o motorista do outro carro pega os galhos, inclusive os troncos, coloca na máquina que tritura tudo e joga na carroceria devidamente protegida pela coberta. Viva a sociedade reciclada. Fuck the virus.

Que deviendrions-nous prisonniers sans les serviteurs
Daqui de cima, superior, de longe, protegido, não vejo em nem um e nem outro qualquer sinal de mascarado, enluvarado e tal, mas estão bem arrumados. Ao final dos cortes e da trituração, avança o melhor jeito alemão de trabalhar, mesmo que no meio de uma pandemia virótica desalmada apenas para alguns setores. O segundo motorista pega um rastelo, recolhe as folhas caídas na calçada, e depois varre tudo.
Ao final, o primeiro motorista, que havia subido, já está ao chão e recolhe a escada, a serra, o guindaste, os cones de trânsito que desviaram os carros de uma das duas pistas. O outro motorista aproveita para limpar as peças usadas, bem como a carroceria traseira e guardar o rastelo, a vassoura, o aspirador e, enfim, pergunto aqui de longe, de cima, superior:
- Você não se preocupa com este tal Sino-Corona-Virus19?
Enquanto os serviçais continuam a vida dita essencial para a sociedade melhor situada, independente dos riscos que pegar ou não o coronavirus, morrer ou não, acontece agora, lá no Centro dito Mitte, o encontro nacional, online, lógico, da Chanceler Angela Merkel e todos os governadores da Alemanha. Baseados nos conselhos da Ciência Moderna, bem protegidos, resolveram prolongar o isolamento social.
– Mais ainda?
Pois então deixemos os serviçais trabalharem em paz, lógico que não me esqueço dos médicos, enfermeiras, motoristas de ambulâncias, faxineiros de hospitais, pegadores de teste, fornecedores de máscaras, policiais e até os guardinhas que vigiam a sociedade protegida para que no parque em frente da minha cela domiciliar não se achegue por demais e tome seu sol nas ancas à vontade. Pelados, sim; sem máscara, jamais. Heil!

¿Qué sería de nosotros prisioneros sin los sirvientes?
Adiantando alguns pontos que começam a valer depois do acordo feito entre os governos federal e estaduais da Alemanha e anunciados agora há pouco:
– A partir de segunda, 19 de abril, podem abrir lojas de até 800 metros quadrados de área.
– A partir de 4 de maio, algumas coisas a mais são permitidas, tipo salão de cabeleireiro e, principalmente, a volta gradual às escolas.
– Até 30 de agosto, nada de grandes eventos tipo shows e até mesmo jogos de futebol.
– Continua proibido, só Deus sabe até quando, os cultos em igrejas, mesquitas, sinagogas e outros do mesmo teor.
– A mesma coisa, tudo fechado, para os bares, restaurantes, teatros, óperas, cinemas e discotecas.
Tudo isso, como acaba de dizer a Angela Merkel, bem tipo dona de casa, porque a Crise do Coronavirus, na Alemanha, alcança apenas um “frágil sucesso interino.” Ou seja, nada de se encostar um no outro, embora o povo alemão seja mesmo do tipo arredio. E continuar na rua, trabalhando, independente da condição, só mesmo os serviçais desta sociedade devidamente protegida. Ela. Eles, não.
Pronto. Terminado o relato de hoje neste Diário da Pandemia em Berlim. Normalmente, eu sei como começa e não tenho idéia de como termina este relato que tem sido diário, desde 11 de março de 2020, quando aqui cheguei para três meses legais de permanência, aliás, como esta dupla de risco, Polaco & Madame, tem feito há muito tempo e mais ainda quando deixou de ser serviçal pública da comunicação.

Inté.
Axé.
Tschuss.
https://www.morgenpost.de/vermischtes/article228910311/Coronavirus-RKI-Fallzahlen-Deutschland-Merkel-Corona-Kontaktsperre-Massnahmen.html