Éramos uma turma porreta fazendo Dodescaden.
Nos trilhos dos bondes de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.
Agitando na redação de O Globo.
Queimando a pele em Saquarema.
Aprontando umas e outras, no Lamas.
Ou em sórdidos botequins destinados a jornalistas.
Acontece a turma a cada tempo diminui, a olhos vistos.
O mais recente.
Meu querido Riomar.
Por Jorge Oliveira
Portugal. É madrugada aqui no Estoril. Ah, madrugada!, por que não eis eterna? A sensação de deixá-la me decepciona, porque você leva os garçons, fecha os botequins, assusta as mariposas, anuncia as manchetes e nos deixa na lama, na mais perdida lama dos seus apaixonados, minha querida madrugada!
Choro, choro muito. E vou chorar, berrar, gritar até tentar encontrar a razão racional do desaparecimento, do sumiço… da dor. Ando trôpego na madrugada pelas calçadas portuguesas das ruas do Estoril, depois de beber a morte do da “Da Fronteira”, o meu querido amigo Riomar Trindade, cantar as suas músicas prediletas, soltar o grito de guerra dos indignados e revoltados e ouvir palavras meeiras de consolo dos amigos portugueses.
É madrugada no Lamas, na Marques de Abrantes. Dentro do bar, as portas de ferro que se fecham, fecham também a madrugada e nos deixa inconsoláveis. Oh, madrugada, nossa companheira, por que você nos abandona tão cedo, ingrata madrugada!
O Fernando, gerente, impaciente, espera pela saída do último freguês, quando à mesa, o Riomar, sempre o Riomar! (desculpe o exagero das exclamações), grita: “Maia, a saideira, porra”. À mesa, o Moacyr, eu, Monteiro, Rosa, Pipoca, Alencar, Auler, Severo, Pauletti, Álvaro, Suely, Fátima, Guida, Ancelmo, Totti, Mandin, etc. etc. também defendem o último uísque.
E a saideira, meio a contragosto do Maia, é servida, porque o gaúcho da fronteira, que chegou ao Rio no início da década de 1970, se posicionava feroz e determinado. De vez em quando até perdia uma briga, mas voltava para o campo de batalha sempre para ganhar , era um vencedor.
Riomar Trindade foi tragado pela intolerância, pelo desrespeito patronal. Morreu de angústia, de desespero, de tédio, e frustração. Há dias, numa conversa por telefone, ele me revelara que fora demitido da EBC sem direito de defesa. E estava magoado: “Foi sumário, ninguém sequer me ouviu. Apenas me mandaram embora. E agora? Na minha idade, tu sabes da dificuldade que é arrumar emprego”. Esta é, sem exagero, a causa mortis do Riomar: o desemprego, a ingratidão.
Trindade, com quem dividi apartamento muito tempo no Rio, trabalhou comigo na JCV, em Brasília. Quando deixou o Correio Braziliense, ficou na empresa durante um tempo degravando os depoimentos do meu filme Perdão, Mister Fiel. Terminou o trabalho exemplarmente. De lá pra cá, nos vimos pouco, até ele voltar para o Rio, onde foi morar num apartamento em Copacabana, única propriedade de uma indenização trabalhista.
Volto a chorar…
O sentimento de dor é de acabar agora esse artigo. Tento me ajeitar, me aprumar, respiro fundo, procuro o desfecho de tudo isso, mas resisto: quero muito escrever sobre o meu querido amigo. É difícil, as lágrimas descem com muita velocidade, uma cachoeira…preciso parar.
É madrugada no céu. Alguém quebra a rotina e anuncia aos berros a chegada de um visitante. Oh, madrugada, você novamente, não percebes que a tua beleza imparcial, neutra (não és noite nem dia!) contamina os nossos corações boêmios?
A porta do céu se abre e os anjos anunciam:
– Por favor, entre Riomar, a casa é tua”.
Riomar Trindade, matreiro, polêmico, desconfiado, segue a passos lentos pelo corredor iluminado, vigiando o ambiente com os olhos verdes esbugalhados, para sua nova moradia eterna, quando o guardião do céu, um velho barbudo, parecido com Deus, estanca à sua passagem e pergunta.
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Filho, o que estás carregando nesta pequena sacola?
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A madrugada, Deus!